Uso da crase: guia completo

Confira esta série de posts e aprenda tudo sobre o uso da crase.

,6 de outubro de 2018

O uso da crase não é uma regra de simples ou rápida explicação, mas, quando entendemos seus princípios, é muito fácil escolher quando o acento deve ou não aparecer.

O macete básico que aprendemos na escola é “Substitua a palavra feminina que vem depois do ‘a’ por uma palavra masculina, se você precisou trocar o ‘a’ por ‘ao’, então há crase”.

Entretanto, como todo macete, este não nos dá a regra que o subjaz. Por isso, trazemos neste artigo as informações de base que você precisa acessar quando na dúvida sobre a aplicação do acento grave.

Uso da crase e o revisor de textos

“Uns craseiam, outros ganham fama.” (Ferreira Gullar)

No ofício do revisor, nada é tão verdadeiro quanto essa frase – ai do revisor que não sabe crasear. Gullar também disse que “a crase não foi feita para envergonhar ninguém”, mas apenas um revisor sabe o quanto é vergonhoso ser alvejado por um redator que pergunta algo como “'De hoje a sábado' tem crase?” e ter que se esquivar de forma educada enquanto corre para acessar o Google, pegar um manual ou uma gramática.

Revisores não são máquinas de cálculo, afinal, em nossa área, “errar é humanas”; mas e se eu disser que é possível para qualquer um responder de pronto, em segundos, sobre qualquer frase, qualquer locução, qualquer estrutura se ali vai a bendita crase ou não?

Uso da crase: análise sintática e análise morfológica

A primeira coisa que vamos aprender é a diferença entre classe e função:

Classe (morfologia) está relacionada à estrutura/classificação de um vocábulo isolado. Quando estamos analisando a classe de uma palavra, fazemos isso sem relacioná-la a outras palavras da frase. De forma mais simples, é a classificação que vemos nos dicionários. No português, há 10 classes de palavras. Numa análise morfológica da frase “Ela vai à praia”, vemos que “Ela” é classificada (como no dicionário) como “pronome pessoal”.

Função (sintaxe) é a relação entre um ou mais vocábulos numa frase, ou seja, é o “papel” que eles desempenham. Se analisarmos sintaticamente a frase “Ela vai à praia”, vemos que “Ela” só pode ser classificada como “sujeito” por causa da relação que essa palavra estabelece com o verbo: Quem vai à praia? “Ela vai”, logo, “Ela” é que pratica a ação = sujeito.

De forma resumida:
Classe = vocábulo isolado.
Função = relação entre um ou mais vocábulos na frase.

Isso tudo pode parecer um beabá, mas é algo muito importante para entender a crase. Para mais detalhes, sugiro a leitura deste artigo do professor Claudio Moreno.

Classes da palavra a

Agora vamos analisar uma palavra bem simples da nossa língua que, neste caso, tem duas classes: a palavra “a”. Sendo assim, existem dois tipos principais de “a” que nos interessam aqui:

  1. a” artigo definido feminino (A mulher; A escola; A gramática);
  2. a” preposição (“Você vai a algum lugar?”).

Artigo definido

Em primeiro lugar, o que vamos ver é o artigo definido feminino “a” sob uma perspectiva histórica. Você sabe de onde ele surgiu? Garanto que, quando souber mais sobre a evolução dessa palavra, vai entender o motivo de tanta confusão com a crase.

Resumidamente, os artigos definidos do português (oaosas) evoluíram do latim da seguinte forma:

  • Masculino singular: ĭllu> elo> lo> o
  • Feminino singular: ĭlla> ela> la> a
  • Masculino plural: ĭllos> elos> los> os
  • Feminino plural: ĭllas> elas> las> as

(TARALLO, 1990. p. 137)

Reparou que antes de perder a consoante “l” os artigos no português mais antigo eram bem parecidos com os artigos do espanhol? Essa é a grande dica para quem sabe espanhol, mas, mesmo para quem não sabe, é bem fácil de lembrar (el niñola niña…).

Como vimos, o artigo definido feminino “a” serve para indicar algo que se conhece, para definir um substantivo feminino.

Preposição

Mas e o “a” preposição? Vamos consultar Bechara (2009, p. 366):

Chama-se preposição a uma unidade linguística desprovida de independência – isto é, não aparece sozinha no discurso, salvo por hipertaxe – e, em geral, átona, que se junta a substantivos, adjetivos, verbos e advérbios para marcar as relações gramaticais que elas desempenham no discurso, quer nos grupos unitários nominais, quer nas orações.

No português há várias preposições que criam entre duas palavras de uma oração uma relação entre ambas: paradeapósemporatécomsobcontradesde etc.: “A casa de Maria”; “Vou ficar em São Paulo”; “Hoje vou estudar até anoitecer”; “Revisão para quê?”…

E temos, claro, a preposição “a”: “Inscrições a partir de julho”; “A pousada fica a duzentos metros da praia”; etc.

De agora em diante, faça um exercício simples: sempre que ler alguma notícia, um livro ou qualquer texto, tente identificar todo “a” que aparecer isolado (em maiúscula ou minúscula, no começo ou no meio da frase) e classificá-lo como artigo ou preposição.

Na próxima parte, você verá como isso fará uma diferença enorme na sua leitura e, consequentemente, na análise que faremos para usar a crase.

Estudo de caso de uso da crase

Vamos analisar a frase “A menina vai à praia”, pois nela há acento indicativo de crase. Sabemos que a crase é uma fusão, uma soma de dois elementos. E aqui vai a grande dica: como na matemática, podemos aplicar uma “prova real”, isto é, “desmembrar” o a craseado em duas seções:

Crase 1

Para refletir sobre o uso da crase em uma sentença, tente sempre visualizar a frase com aquela barra vertical separando as duas seções.

Então, voltando à fusão entre a preposição “a” e o artigo feminino “a” (eliminando a barra vertical), teremos:

Crase 2

O acento grave sobre o “a” (“à”) não indica tonicidade nem nada do tipo, uma vez que seu papel é mostrar que aí houve a fusão entre preposição e artigo. Poderia ser usada qualquer outra coisa no lugar do acento grave, no entanto essa foi a forma mais prática encontrada para indicar esse “causo” gramatical.

Para haver crase, sempre é preciso haver o artigo feminino “a”

Este é o motivo de tanta confusão com a crase, pois primeiro precisamos analisar a preposição (a preposição sempre virá antes do artigo feminino). Em seguida é preciso analisar se há, depois da preposição, o artigo feminino “a” (ou seu plural: “as”). Então fica outra pequena regra: crase sempre vai exigir artigo feminino “a” (ou “as”).

Lembra-se desta velha regra?

Substitua a palavra feminina que vem depois do ‘a’ por uma palavra masculina, se você precisou trocar o ‘a’ por ‘ao’, então há crase.

 Exemplo de não uso da crase com o artigo masculino “o”

  • A menina vai a | o parque.
    • A menina vai ao parque.

Obviamente, na frase acima não vai crase, mas sim a combinação “ao”. Outro exemplo:

  • Maria vai a | as festas juninas.
    • Maria vai às festas juninas.

Exemplo de não uso da crase com pronome indefinido

Agora repare:

  • Maria vai a | algumas das festas juninas do bairro.

Antes de “algumas” não há artigo feminino “a”, pois não falamos “os algumas”, “o algumas” nem “as algumas”, mas simplesmente “algum”/“alguns”/“alguma”/“algumas”, sem nenhum artigo.

Exemplo de não uso da crase com numerais

  • A viagem está marcada para daqui a | seis meses.
  • A pousada fica a | cem metros da praia.

Nos dois últimos casos, também há ausência de artigo antes de “seis” e antes de “cem”, o que não permite que exista crase.

Exemplos de não uso da crase com verbos

  • As vendas de Natal começam a | partir de 10 de dezembro.
  • A | partir das 18h.
  • Todos estão dispostos a | colaborar.

Nos casos acima, o “a” é pura preposição, pois verbos não exigem artigos definidos (a não ser quando são substantivados: “O brincar é importante para a criança”).

Até aqui, vimos as regras essenciais para analisar a crase, porém, há ainda casos em que o substantivo feminino está oculto e mesmo assim há crase, além de situações em que a crase serve para evitar ambiguidade, para clareza, entre outros.

Fontes

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
TARALLO, Fernando. Tempos linguísticos: itinerário histórico da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.


Escrito porAllan Moraes,
em6 de outubro de 2018.
Paulistano, divide o tempo entre tentar aprender línguas, livros de filosofia e o trabalho como revisor freelancer.
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