Êta polêmica bôa!

Entenda por que o título da novela da Globo "Êta mundo bom" está gerando polêmica e acompanhe nossos argumentos sobre o uso do acento na interjeição.

, 20 de maio de 2019

Vamos iniciar o ano com o assunto ortográfico do momento? Vamos! Na semana que passou, muito mais do que a obrigatoriedade da nova ortografia, um dos assuntos mais comentados pela minha timeline foi a crítica ao acento da interjeição "eta" no nome de uma nova novela da Globo, Êta mundo bom.

Os times estão divididos entre os que acham o acento um absurdo e os que acham aceitável. Bem, podemos refletir aqui sobre o ocorrido dentro de seu contexto, partindo do pressuposto de que a acentuação gráfica faz parte das regras ortográficas da língua portuguesa brasileira.

Quem regulamenta a ortografia?

verbete eta Volp

Comecemos pelo fato de que no Brasil a ortografia é questão de lei – em uma busca pela legislação em que há o termo “ortografia”, tem-se mais de uma dúzia de resultados. Ou seja, existe, sim, uma regulação ortográfica oficial, que é estabelecida pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp).

O Volp, por sua vez, registra a grafia da interjeição sem o acento, mas destaca entre parênteses a ortoépia da palavra, cuja sílaba tônica é pronunciada fechada (ê). O que nos leva ao ponto a seguir.

Qual é a regra de (não) acentuação da interjeição “eta”?

verbete eta Houaiss

“Eta” (e-ta) é uma paroxítona – a penúltima sílaba é a tônica – terminada em a. Paroxítonas terminadas em a a rigor não são acentuadas. Uma vez que se sabe que só as oxítonas terminadas em a são acentuadas, então infere-se (mesmo um falante não nativo que domine regras de acentuação) que a sílaba forte é mesmo a penúltima; caso contrário, haveria o acento (*e-tá) obrigatoriamente.

Por que é fraco o argumento de que a linguagem usada no título é informal?

Perceba que o foco da crítica não é o uso da interjeição em si, que está perfeitamente adequado. O que leva a esta reflexão é o uso de um acento que não parece em nada refletir uma variação de fala regional, dado que a pronúncia continua de acordo com a empregada em todo o Brasil.

Bom, desde a escola aprendi que, mesmo quando reproduzimos na escrita a linguagem informal, gírias, etc., devemos usar sempre as regras de ortografia e acentuação normalmente.

Alguns exemplos de expressões da linguagem informal:

  • (estou → tô), e não to;
  • tó (tome → tó), e não to;
  • (você → cê), e não ce;
  • (está → tá), e não ta;
  • (senhor → sô), e não so;
  • fi (filho → fi), e não .

Todas essas reduções pertencem à linguagem informal, mas mesmo assim podem e devem obedecer ao critério de acentuação ao qual estamos já habituados (consulte a regra dos monossílabos tônicos). Sendo assim, também não faz muito sentido alegar que é um sinal de ênfase que mostra uma variante linguística regional, pois provavelmente todos os falantes do português brasileiro contemporâneo pronunciam a sílaba tônica “ê” sem equívocos ou dúvidas.

Veja no quadro a seguir que não só os monossílabos ganham ou perdem acentos de acordo com a variação regional, mas também as oxítonas e paroxítonas de acordo com as pronúncias, e isso influencia como elas são grafadas.

Tonicidade Final: a(s), e(s), o(s), [também em, ens] Outros finais
Oxítonas com acento
a: fuá, trabaiá, vortá
e: ocê (“você”), inté, cuié
o: mió (“melhor”), sinhô, cabô (“acabou”)
sem acento
Paroxítonas   sem acento
a: lasquera, eta, toucera (“touceira”)
e: pexe, beje (“beije”), arquere
o: isquero, vortemoquejo
com acento
Proparoxítonas  com acento com acento

Itálico: sílaba tônica da palavra.
Elaboração: Allan Moraes.

Outro ponto que nos faz duvidar desse critério da linguagem informal foi o uso da palavra “bom”, de acordo com o padrão culto-formal da língua, em detrimento do nosso sonoro e nem sempre tão interiorano “bão”, que faria um par muito melhor e mais consistente com o “eta” do título. Por que causar controvérsia com um acento sem propósito quando poderíamos ter abusado muito mais da informalidade?

Mas e a licença poética?

Podemos considerar que o título da novela faz parte de um contexto literário-artístico. Sendo assim, nada há o que fazer quando o autor puxa da manga a carta da licença poética. Provavelmente até mesmo outros escritores já fizeram uso do acentinho da discórdia. Pois quem escreve tem, sim, o direito de transgredir as regras que achar mais ou menos adequadas para o contexto de comunicação do seu texto. Sendo assim, luta perdida! Contra ~poesia~ não há argumentos gramaticais que sejam suficientes; resta-nos aceitar a vontade do autor.

Então, como lidar?

Embora o argumento “linguagem informal – variação linguística regional” não me convença pelos motivos que já deixei claros aqui no artigo, como revisora eu alertaria o autor da inadequação, explicaria os meus motivos e deixaria que ele decidisse por conta própria.

Nosso dever é sempre alertar, nunca impor. Aprendi isso em alguns anos revisando textos publicitários, e essa é uma lição que você também deve aprender, pelo bem de não criar cabelos brancos antes do tempo.

Minha sugestão é que, se você é de novela, divirta-se vendo a novela (espero que seja boa); se você não é de novela, aproveite o tempo extra para ler todos os nossos artigos sobre ortografia e também curtir a nossa fan page no Facebook. ;)


update

Parece que a emissora mudou de ideia em relação ao acento de "eta", que virou um chapeuzinho.

eta mundo bom novo logo

Via: Blog do Mauricio Stycer.


Escrito por Carol Machado,
em 20 de maio de 2019.
Mestra em Ciências da Linguagem na Universidade Nova de Lisboa. Graduada em Letras pela PUCRS. Revisora desde 2008. É autora do Manual de Sobrevivência do Revisor Iniciante e coautora do Revisão de Textos Acadêmicos - boas práticas para revisoras, estudantes e a academia.
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